quarta-feira, 26 de novembro de 2008

MULHER FANTASIA

(gravura: Neli Vieira)
Vejo-te assim, pequenina
Sentada neste banco de pedra
Qual uma santa
Da minha adoração.

Nunca adorei santo algum
Porém hoje, neste deserto
Por certo te adoraria
E de joelhos me prostraria
Como o mais fanático dos fiéis
A teus pés, assim contrito
A fim de inebriar-me
Do néctar que emana dos teus
Cabelos
Das tuas carnes morenas,
Do teu ventre esguio
Dos teus seios
Pequeninos, palpitantes
Como dois filhotes de passarinho

Vejo que não passas de uma miragem
Que alucina a minha visão
Neste imenso deserto
Cheio de areias escaldantes
Que me resseca a garganta,
Me turva a visão e nos meus delírios
Ouço os clarins tocando
Acompanhando a tua voz mansa
De mulher bonita
Serás uma Beatriz moderna
Na visão de um maluco Dante
Tropical?...

Oh!... Mulher divina, ajuda-me
A atravessar este deserto imenso
Cheio de chacais e escorpiões
Que aferrotoam os meus pés cansados.

A UMA MULHER AZUL

(gravura: Neli Vieira)
Existem mulheres e mulheres
Mas para mim só existe uma
Pequenina, bonitinha, sensível
Assim como uma flor de linhaça.

Não sei porque
Mas essa mulher azul,
Entre tantas outras,
Que não são azuis
E que existem por aí,
Entrou na minha vida
De uma vez por todas
E assim, definitivamente
Por que será?...
Não sei explicar.

A conheci numa destas
Voltas que a vida dá
E desde que a vi pela vez primeira
Ficou ela encravada em minha mente

Tornamo-nos amigos.
Só a amizade não basta
Para um homem apaixonado
E assim, passamos a nos falar
(os nossos telefones que o digam)
a discutirmos sobretudo artes, gostos, paladares,
cheiro de flores, perfumes, livros, vestuários
E a enfrentarmos caminhadas
A fim de nos revermos e andarmos juntos à toa, à toa...
Até quando, até quando?...
Pergunto eu encabulado.

Afinal de contas
A vida é mesmo breve.
E não é somente isso:
Flores, fotos, caminhadas, gostos e paladares.
A vida também é delírio, sonhos,
Embriaguez dos espíritos, olhares, gemidos
É comunhão de pensamentos
É deleites juntos. É ansiedades
É prazeres, é realizações dos sentidos.
Portanto, o que faremos nós,
Aqui parados na curva do tempo?...
Heim, me diga per favoire.


Algumas considerações sobre a Toca Filosófica por Iracema M.Regis


A Toca Filosófica ou seja o couto, onde fica entrincheirado o jagunço curiapebano, defensor das letras nacionais, que atende pelo cognome Th, e mais conhecido por Aristides Thedoro, escritor e cidadão mauaense, oriundo de plagas diamantinas, no sertão baiano, é um lugar sagrado, quase inabitável e de difícil acesso. Primeiro, porque fica no alto de um morrote e para alcançarmos o topo faz-se necessário subirmos por uma trilha estreita e íngreme (o que só podemos arriscar durante o dia), pois à noite, como todo esconderijo que se preze, a ausência de luz elétrica (preferida pelo dono), não permite que vejamos os 38 degraus limosos pelo tempo, (a exemplo do que vimos nas escadarias seculares do Solar de Apipucos, no Recife, hoje Fundação Gilberto Freyre, onde viveu e morreu o maior sociólogo brasileiro, Sr Gilberto Freyre, autor de uma centena de títulos, entre eles Nordeste, Perfis de Euclides e outros perfis, Sobrados e Mucambos, Assombrações do Recife velho e, o mais famoso deles, Casa Grande & Senzala).

Galgados os 38 degraus, temos uma visão meio paradisícaca – (perdoe-me o exótico habitante, que não gosta nem um tiquinho desse nome pomposo), explico: lá em cima há uma vista panorâmica de toda a geografia e do firmamento e, como se não bastasse, o cabra dá-se ao luxo de cultivar hortas belíssimas, com destaque para as verduras que consome: um pé de alecrim e outro de babosa, ambos gigantescos, que poderiam ter passado para o livro dos recordes, pois medem de 4,00 a 4,50 m de altura. Tudo de um verde múltiplo, mesclado de rosas, margaridas, dálias, palmas, cravos vermelhos, brancos, matizados e amarelos; capim santo, erva cidreira e outras florezinhas, a maioria levantados em balcões, que nos transportam aos jardins suspensos da antiga Babilônia.

Mais um detalhe curioso: embora não tenha uma tabuleta à entrada, como aquela da Academia de Platão, na velha Grécia – “não entre aqui quem não gostar de geometria”, nesse Couto, por uma seleção natural de gostos, afinidades, filosofia de vida, são bem poucos os que lá adentram: a exemplo das religiões, só os escolhidos por Th.

Quase inabitável, sim, diante da parafernália de papéis, estantes apinhadas de livros, tomos espalhados pelos vãos da cozinha, banheiro, alcova e adjacências, somando-se a velha e parca mobília, a mesa desarrumada, em que repousa a legendária, retrógrada e bem amada OLIVETTI, ferramenta principal do ato de escrever do autor, com o total de nove livros publicados, sendo quatro deles através do FAC – fundo de Assistência à Cultura de Mauá. O mais recente, O Vaqueiro Bendengó e mais estórias de Curiapeba, em fase de composição; e aproximadamente 4000 artigos publicados na imprensa, durante uma trajetória de 38 anos dedicados ao jornalismo. Das paredes recobertas de quadros de pintura, (incluso um original de Volpi), colocados de forma desordenada, predominando o valor das estampas e a personalidade desprendida do colecionador, que conhecemos tão bem.

Ao afirmar que a Toca – (assim nos referimos no dia-a-dia) – é um local sagrado (o proprietário se diz ateu) não pensem que ali encontraremos santuariozinhos, altares, confessionários, sacristia ou que a arquitetura seja diferente das residências comuns do bairro. Não. Mesmo obedecendo às linhas padronizadas das construções de classe média baixa, pelo tesouro ali encontrado (cerca de mais ou menos 5000 exemplares, para ser modesta), composto por Literatura Brasileira e estrangeira – poesia e prosa, obras raras, como primeiras edições, muitas delas autografadas pelos seus respectivos autores, entre eles Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, etc. O primeiro livro, Os Escravos, de Castro Alves, adquirido em 1º de novembro de 1958; obras completas, como a balzaqueana, em edição especial da Globo de Porto Alegre; livros de arte, com predominância para a pintura; sobre cangaço, mais de 200 exemplares; tudo que conseguiu adquirir, de e sobre Euclides da Cunha e Canudos; muitos livros sobre a questão da negritude, a escravidão; música popular brasileira, jazz, história antiga, obra completa de e sobre Zé Lins do Rego, Graciliano Ramos; Semana de 1922; autores russos, americanos, e sobretudo Literatura Portuguesa; livros de culinária, pois o nosso cangaceiro também é um exímio cozinheiro. E ainda uma infinidade de tomos que tratam do próprio livro, editoração, encadernação, etc.

A Toca Filosófica nos parece a grande nave de um templo em que navegamos (menos na Internet, velha birra do dono), meditamos, filosofamos, falamos de Literatura, declamamos, apreciamos fotografias, ouvimos música, pensamos o mundo pela ótica da cultura e dos nobres valores.

Instigados que somos pelo universo livresco e pela pessoa do bibliófilo, nos irmanamos, nos purificamos pela arte e dali saímos como se tivéssemos deixado lá dentro todos os nossos pecados. Se é que ler, escrever, nos empanturramos de boas conversas e amizades sejam pecados venal ou mortal.

Iracema M.Régis é jornalista e escritora. Autora de 11 títulos publicados, incluindo poesia, literatura de cordel, contos, resenha literária, entre eles Argamassa e mais l4 poemas sobre Mauá e Babilônia de Papel – e outros artigos sobre obras e escritures de Mauá e da região do ABC paulista.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Suzy e Malô...


Suzy e Malô numa receita de amor eterno (VIII)

Continuação do capítulo VII abaixo

A moça, percebendo sua preocupação, dobrou a voltagem, dizendo:

- Pois é, meu bem, a mulher brasileira ainda olha para tudo aquilo que lhe proporcione segurança. Mormente na eventualidade de nascerem filhos e os dos não se entenderam.

- Olha,meu amor,não seja tola. Isso jamais acontecerá. Asseguro-lhe que vamos nos entender muito bem e viver juntos o resto das nossas vidas.

Acabe com estas idéias estúpidas, que só servem para estragar o nosso Bom relacionamento e vamos viver a vida em toda a sua plenitude – ok? A moça contempla os olhos do rapaz, por alguns segundos, como que a sondar até onde ia a sinceridade daquelas palavras e disse como quem toma uma resolução instantânea:

- Benzinho, haja o que houver, vou confiar em você e aceitar a sua proposta, contanto que saiamos deste bairro – ok? ...

- Se a dificuldade for só esta, cabe a você escolher um bairro que lhe agrade e uma casinha onde possamos formar o nosso lar. Certo, ok?...beijou-a com violência na boca.

- Que você acha, benzinho, se fôssemos para a Vila Mariana?...

- Ótimo!... Ótimo!... – disse o acadêmico, puxando-a para si e dizendo:

- Poderemos arrumar uma casa pequenina, porém confortável – não?...

- De acordo com as nossas posses – falou Suzy.

O rapaz nessa época, após as aulas na faculdade, trabalhava como revisor numa revista de modas e escrevia duas colunas diárias, uma de variedades, para a “Folha”, e outra de crítica literária, para um jornal de boa repercussão. Esses empregos lhe permitiam algum dinheiro, e Malô tencionava juntamente a outras economias que herdara do pai, montar o seu escritório de advogado, logo após a formatura, que se aproximava.

Os amantes, através de uma imobiliária, alugaram uma casinha modesta, bonitinha e bem arejada, que fora adornada com capricho e bom gosto, conforme a vontade dos dois, que em questão de estética se combinavam muito bem.

Malô sempre sonhara com uma casinha arrumada a seu gosto, uma mulher bonita, inteligente e uma Biblioteca; estava como a rachar de contentamento ao ver, aos poucos, seus velhos sonhos se concretizando. A princípio, mandaram pintar a casinha toda de cores alegres e encheram as paredes de quadros simples, de autoria de pintores menores, consolando-se por não poderem comprar um Van Gogh, um Renoir, um Volpi, ou Carybé, seus pintores prediletos.

A sala destinada ao gabinete de trabalho de Malô fora mobiliada com esmero, carinho e imaginação. As grandes estantes abarrotadas de livros reluziam através da claridade que entrava pela janela. Nas paredes os quadros serviam como decoração e na saliência de uma das estantes sobressaía um busto altivo, de Beethoven, que paradoxalmente se chocava com a fulgurância de um Castro Alves, de um pinto baiano, elegante, simpático e sonhador, ao lado de um Cristo orando no jardim do Getsêmani (quadro predileto de Malô, que se dizia sem religião), que enchia todo o ambiente com sua presença augusta e majestosa.

Malô e Suzy não continham a alegria de ver a casinha mobiliada com esmero e bom gosto. Suzy, ao escolher os móveis do quarto, dera preferência a um estilo do século XVIII, tudo feito com bom gosto e simplicidade, que coadunava muito bem com a vivenda e o espírito dos donos.

Após colocarem tudo em ordem, Malô se encarregou de participar aos pais da moça os seus planos para o futuro. Ensaiou por duas noites, no terceiro dia, munira-se de forças psíquicas e abordara-o, expondo os seus pontos de vista em relação ao acontecido. O velho, após ouvir a estória em silêncio, tivera uma verdadeira convulsão nervosa, e notando que nada mais poderia fazer, a não ser em parte concordar, disse, num sotaque da Sardenha:

- Minha filha, nunca pensei que você viesse a nos envergonhar, justamente agora, no fim das nossas vidas – abaixou a cabeça, acendeu o seu inseparável cigarro de palha e limpou duas copiosas lágrimas quentes.

A velha Margarete chorava e resmungava em italiano. Suzy também derramara copiosas lágrimas, juntamente aos pais, penitenciando-se do que acontecera.

Os dois, desse dia em diante, passaram a viver na nova casinha, onde cada objeto parecia sorrir. Os amantes viviam felizes. Malô, sempre sorridente, chamava a sua companheira num misto de admiração e ternura de miss Suzy e esta em retribuição, chamava-lhe “meu gênio”.

O rapaz, após a formatura, montou um escritório de advocacia em companhia de seu irmão, Afrânio (advogado de muita tarimba e já dono de boa clientela) e Chico, seu grande amigo e colega de faculdade. Através da influência de Afrânio, tiveram êxito e adquiriram renome em pouco tempo, mas como não tinha jeito para advogar e se sentia chamado para s letras, abandonou a jurisprudência e se entregou de corpo e alma ao jornalismo e à preparação de seus romances. Achava que aquele era realmente o seu lugar, o seu mundo, e não ficar dentro de uma sala de advogados e encher a cabeça com problemas alheios, que na maioria das vezes não poderiam ser solucionados por meios lícitos. Fizera nome com rapidez, no jornalismo, onde militava por algum tempo e em seguida, como escritor: seus livros escritos num estilo ágil, vibrante e fogoso, sempre recheados de ironia, humanismo e simpatia pela causa dos oprimidos e injustiçados, eram disputados pelos leitores e, mais tarde, vertidos para várias línguas, proporcionando-lhe uma vida relativamente estável, que lhes dava alegria de viver e lutar em prol da raça humana. Suzy, com afeto de companheira dedicada, passou a ser sua eficiente secretária, agente dos seus negócios e fonte de inspiração, pois se vira por várias vezes modelo das mais destacadas heroínas de suas novelas e contos.

A casa do escritor passou a ser um verdadeiro “teatro” daquele bairro, como disse com justiça um certo colunista social. Suzy, à noite, ao piano, deleitava os presentes com imortais peças de Beethoven, Villa Lobos, Tchaikosisky e J.Sebastan Bach. Malô lia trechos seus e de seus autores prediletos. Chico o velho companheiro nas suas noites de inspiração, declamava versos incandescentes, como que a invocar a alma condoreira de Castro Alves. Dona Cleyde tagarelava, Renato contava anedotas, falava de Oswald e Mário de Andrade (seus ídolos), enquanto isso Galileu, que era um assíduo freqüentador das noites literárias na casa do amigo, não perdia oportunidade para pregar sua filosofia pessimista aos novos admiradores do escritor, que para ali se dirigiam em busca de uma palavra amiga e incentivadora. Ali se evocavam os colegas ausentes, relembravam os tempos de faculdade, comentavam as produções literárias dos novos autores, enfim, a casa do escritor acolhia todos que para ali se dirigiam em busca de estímulo sincero ou de uma palavra de calor e encorajamento.

O certo é que Malô se sentia em plena mocidade, um homem realizado em sua casinha cheia de livros, objetos de arte e afeto, onde se dedicava à sua profissão de escrito, à causa dos injustiçados, aos seus amigos e, em particular, á sua bem amada SUZY.

FIM

Suzy e Malô...


Suzy e Malô numa receita de amor eterno (VII)

Continuação do capítulo VI abaixo

Houve um período de silêncio, que logo fora quebrado por Suzy, que procurou, meio desenxabida:

- E nós, o que vamos fazer, benzinho?...

- Ora, meu amor, sejamos civilizados, juntando-nos aos poucos que lutam para erradicar o preconceito em nosso meio – ok?...

- Não entendi muito bem – disse a moça.

- Ora, minha querida, para se viver feliz, não é necessário que sejamos amarrados um ao outro pelos laços estreitos e convencionais do casamento.Vamos viver juntos, como Simone de Beauvoi e Sartre, “calejar o espírito”, como disse o Galileu.

- Benzinho, falando, tudo parece fácil e bonito, mas não parece seguro. Não se zangue comigo, meu amor, já sei, ainda estou presa aos laços estreitos da velha moral burguesa – não?...

- Minha Suzy, - disse Malô, puxando a moça, que estava em pé ao seu lado e fazendo-a sentar-se em sua perna. O casamento não garante felicidade a ninguém, pelo contrário, desgraça para o resto da vida àqueles pobres cônjuges que receberam as bênçãos do padre e a legitimidade do cartório, e que na verdade, não nasceram um para o outro.

- Pelo menos dá segurança – não? falou a moça.

- Não se iluda com futilidades minha bobinha. Tudo isso não passa de engodo. O Galileu sempre diz do alto dos seus conceitos filosóficos que “o casamento é refúgio”.

- Ora, querido, o Galiléu é filósofo e os filósofos geralmente não se casam – não?...

- Então sejamos também filósofos – disse Malô, com ironia.

A moça ficou calada, como que a meditar no assunto e depois perguntou com ar sério:

- O que vou dizer a meus pais?:...

- Quanto a isso, não se preocupe; deixe por minha conta, que me entendo com os velhos.

- Vou morrer de vergonha – disse a moça.

- Vergonha de quem?...

- Das minhas colegas.

- Não ligue para a torcida, pois hoje em dia, quase todo mundo faz isso.

- Com que cara vou me apresentar a meus pais?...

- Com a mesma de sempre – disse o rapaz, beijando-lhe a testa.

- Gostaria de ter personalidade para tanto – disse a moça.

- Asseguro que muitas das suas colegas vão ficar com inveja de você – disse o rapaz.

- Será?...

- Você verá.

- Anrã!... fez a moça, sorrindo.

- Estou certo de que Dona Cleyde e Renato não te recriminarão por isso.

- Mas nem todomundo tem a compreensão de Dona Cleyde e seu Renato.

Malô estreitando a moça contra o peito disse a sorrir:

- Que achas, minha querida, se alugássemos uma casinha fora daqui e fôssemos viver a nossa vida longe dos olhos cobiçosos dos seus amigos, parentes e colegas?...

A moça levantou-se e foi até a mesa, apanhou o pente na bolsa, penteou os cabelos de pêssegos e voltou-se para Malô dizendo:

- Vou-me embora, amanhã darei a resposta definitiva – ok?...


.....

A moça, ao encontrar-se com o namorado no dia seguinte, tinha os olhos pisados, como se houvesse chorado e uma leve palidez no rosto, que a deixava mais bela e sedutora. Malô, ao vê-la assim, interrogou:

- O que você tem, meu anjo?...inquiriu o escritor.

- Tenho medo de aceitar o seu convite...

- Medo!... – porquê?...

- Ora esta, de juntar-me contigo, a não ser pelo casamento.

- Você ainda está deveras arraigada aos velhos padrões de moral burguesa – não?...

- A mulher brasileira ainda não está preparada para tais lances de liberdade, como a francesa e a sueca – disse a moça – e eu, como não poderia deixar de ser, ainda estou presa a velhos padrões de moral.

- Anrã!... – fez o rapaz, demonstrando-se preocupado.

(Continua no próximo capítulo)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Suzy e Malô...

Evening Tango by Trish Biddle
Suzy e Malô numa receita de amor eterno (VI)

Continuação do capítulo V abaixo...


Sorriu o acadêmico meio vaidoso e disse em seguida:

- A Zeus...

- Sempre com seus gregos, não?...

- Não é bem não gostar dos gregos, apenas não gosto ou não entendo a sua mitologia, o que dá no mesmo.

- Você mesma me parece uma deusa grega – disse Malô, declinando a cabeça no ombro da moça.

- Qual delas?...

- Não sei qual delas, talvez Afrodite, a deusa do amor.

- Afrodite não era romana?...

- Sabe que no momento não me recordo bem se era grega ou romana?...Mas de qualquer maneira, não tem isso a mínima importância, o que interessa mesmo é você – puxou-a e apertou-a de encontro a si mesmo.

- Será que ela era loira?...inquiriu Suzy;

- Não sei, talvez...

- Quem sabe se não era híbrida, meio romana, meio grega...

- Anrã!... – fez o rapaz, como que a pôr termo à conversa.

- Então, por Zeus, continue a leitura – disse Suzy, consertando os cabelos loiros, que se haviam espalhado.

- O segundo capítulo está muito ruim, convém deixarmos de lado, vamos conversar.

- Nada disso, vim aqui para ouvir a leitura do livro.

- Você é intransigente – não?...

- Vamos! Seja bonzinho, leia, leia!...

Malô em seguida beija-a no busto, que aparecia sob o longo decote do vestido vermelho em forma de V e iniciou a leitura do segundo capítulo.

Ao término da leitura, a moça deixando transparecer a sinceridade de que se achava possuída, disse:

- Estão ótimos esses dois capítulos. Vejo neles fulgurância do melhor Graciliano Ramos.

- Você me deixa meio vaidoso e ao mesmo tempo humilhado, comparando-me ao velho mestre de Quebrângulo. Ou pretende com isso que eu prossiga escrevendo estas bobagens?...

- Minha opinião foi sincera, sem a mínima intenção de lisonjeá-lo.

- Ótimo!... Ótimo!...

- Rogo-lhe que prossiga, esse livro, por certo, vai abrir-lhe as portas da fama.
- “Vamos a veire” – disse o rapaz, imitando um sotaque português, abandonando os originais sobre a mesa e convidando a moça a olhar seus livros em uma estante que ficava entre dois sofás vermelhos.

A principio mostrou-lhe alguns poemas inéditos, que pretendia publicar em livro. A letra do samba “Os independentes”, uma coleção das obras completas de Dostoiewisky, com alguns volumes bem sublinhados de vermelho, demonstrando sinal de contínuo manuseio. Depois, tirou de uma prateleira um exemplar dos seus “Os Humilhados”, que continha uma esquelética paisagem na capa ferruginosa, sentou-se no sofá, dizendo:

- Vou autografar um exemplar do meu livro com uma dedicatória bem bonita:

- Obrigada, você é um amoreco!...disse Suzy, sentando-se ao lado do escritor, que, tomando da caneta, escreveu na sobrecapa do livro, com letra grandalhona e redonda:

“Para a graciosa noivinha Suzy, com sua boca de pitanga e seus cabelos de sol”.

A moça, ao ler a dedicatória lisonjeira, abraçou o namorado pelo pescoço, cobrindo-o de beijos, como que a retribuir o preço da dedicatória. O rapaz abraçou-se a ela e se possuíram pela primeira vez. Enchendo a sala de gemidos, suspiros e ais de amor.

Suzy, após o ocorrido, muito sonolenta, penteou-se em frente do grande espelho e perguntou com um sorriso enigmático:

- Benzinho, o que fizemos?...

- Amor, minha querida – respondeu o rapaz, também a sorrir.

- Tenho medo de haver concebido um beibe – disse a moça apertando o baixo ventre. Tenho um medo danado da boca do povo.

- O povo que se lixe, minha querida. É alto tempo de nos desprendermos desses conceitos bestas. Nada nos interessa do que alguém venha a pensar ou dizer a nosso respeito.

- Papai,quando souber o que aconteceu, será capaz de me matar.

- Não vai matar coisíssima nenhuma. Ele acabará por nos entender.

- Será, benzinho?...

- Oh, sim, você verá!... – disse o rapaz.

- Em parte, estou de acordo com você – disse Malô – o seu medo até certo ponto é justo. Mormente num país semi-bárbaro como o nosso, onde a religião monopoliza e sufoca toda a idéia de liberdade, que foge aos seus conceitos.

- Isso é verdade – disse a moça, pensativa.

- É preciso que o nosso povo se livre o quanto antes desses falsos padrões e passe a viver de maneira mais civilizada.

Continua...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Suzy e Malô...

Suzy e Malô numa receita de amor eterno (V)

Continuação do capítulo IV, abaixo

Um papagaio, empoleirado nos galhos de um vetusto abacateiro, berro estridentemente:

- Dê cá o pé loro...Cá o pé – fifiu!...

Um gato vermelho, de grandes olhos amarelos, que pareciam dois faróis, passava coromiando por cima do muro, como que a chamar a fêmea para as delícias do amor polígamo. O papagaio repetia:

- Cá o pé loro!...Fifiu!...

Nisso a noite caiu de verdade, deixando-os iluminados pela luz crua e mortiça do poste. Os dois, por sua vez, encostaram-se à parede e permaneceram até tarde, trocando juros de amor, beijos e abraços apaixonados.

Depois de alguns dias, Malô fora apresentado aos pais de Suzy, dois velhos italianos, que já o tinham na conta de “um de casa”, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, devido aos elogios que Dona Cleyde e Renato Amarante teciam a seu favor.

Tudo agora parecia correr bem e os dois estavam realmente apaixonados um pelo outro. Prova disso é que todos os dias o estudante sacrificava algumas horas dos seus estudos, leituras e pesquisas, para ir buscar a moça no colégio, a fim de mais tempo ficarem juntos, tecendo planos para o futuro, que segundo as suas conjecturas, lhes parecia belo e risonho.

Certo dia, nesse percurso, após uma tarde de beijos, abraços e apalpadelas, sugeriu Malô:

- Meu mor, gostaria que você fosse à minha casa; estamos a poucos passos dela, assim pelo menos você fica conhecendo-a e eu poderei ler para você os originais do meu livro.

- Tem gente em sua casa?... – indagou a moça.

- Oh, sim, deve estar lá a cozinheira. Olhou o relógio e mentiu desavergonhadamente, pois a moça havia se retirado muito antes de Malô ter deixado a casa.

- Sendo assim vamos – disse a moça.

- Espero que sugira um belo título para os meus originais.

- Logo eu, amozinho?...

- Sim, você mesma!...

- Se é coisa que eu não sei é dar título...

- Pois eu acho que você tem muito bom gosto; porventura “Sobre as margens do Danúbio Azul”, “Vento, sol e sal” e “Sonhos de uma tarde de verão em Vila Rica” não são belos títulos?...

- Servem – disse a moça.

Sorriram, apertando-se um contra o outro.

Nesse ínterim já estavam chegando à casa dela. A porta, que por sua vez, não poderia fazer milagre, a fim de confirmar a mentira do rapaz, permanecia fechada e Suzy, com ceticismo na voz, inquiriu:

- A sua empregada já foi embora?...

- Creio que deve ter saído por aí... – disse Malô abrindo a porta e fazendo um largo gesto com a mão, convidando a moça a entrar. Essa, por sua vez, tartamudeou:

- Devemos...de...de...

- Não se preocupe querida, sei o que você está pensando. Acalme-se, a empregada por cedo logo estará de volta.

A moça por fim acedeu, meio desconfiada.

- Afinal, para que todo este receio, você não é minha noivinha, não iremos nos casar em breve?... – apertou o lóbulo da orelha da moça e beijou-a na testa de maneira ingênua e afetuosa.

- Anrã!... – fez a garota, acalmando-se.

Malô fechou a porta com o pretexto de que entrava muito vento e abriu a persiana de uma larga janela, que inundou a sala de claridade. Em seguida, convidou a moça a sentar-se junto à mesa, apanhou os originais do romance na gaveta e leu para Suzy o primeiro capítulo. A moça disse haver gostado muito da estória em si, como também do estilo, que a ser ver era enxuto e desprovido de “enchimento retórico”. Em seguida levantou-se e dando voltas pelas costas do acadêmico, abraçou-se ao seu pescoço a olhar a pauta escrita sobre a mesa:

- Meu bem, está muito bom esse capítulo. Gosto da clareza que você conseguiu dar ao texto.

- Pois eu não estou nada satisfeito com alguns parágrafos, os quais pretendo cortar ou modificar.

- Já sei tudo, trata-se da eterna insatisfação dos escritores com seus trabalhos – no?... Agora não vai você dar uma de Hemingway dos trópicos e reescrever esse capítulo 29 vezes. Para mim está muito bom, gostaria até de saber a quem você foi pedir inspiração para escrever coisa tão bela assim.

Continua...

Suzy e Malô...


Suzy e Malô numa receita de amor eterno (IV)

Continuação do capítulo III abaixo

A festa chegava ao fim. Dona Cleyde e Renato aproximam-se dos namorados, pediram licença e avisaram a Suzy que estava na hora de se retirarem. Em seguida, dirigiram-se para o automóvel estacionado do outro lado da rua, deixando que Malô e Suzi seguissem atrás. Suzy, aproveitando, disse quebrando um pequeno silêncio entre os dois:

- Se tiver tempo, vá me buscar na segunda-feira, às l5 horas, no colégio Afonso Taunay, onde leciono, assim poderemos nos rever e termos tempo para conversar – ok?...

- Irei, sim – disse o estudante.

- Te aguardo no saguão do prédio, próximo à porta do lado esquerdo.

- Melhor seria que eu lhe esperasse na porta do Cine Nobel, gosto, sempre que posso, distanciar-me de padres e freiras.

Sorriu a moça:

- Como queiras...

Então na porta do Nobel – ok?...

- Aguardo, heim?... tchau!...

- Tchau!... durma em paz...

Dona Cleyde obtemperou, com voz cansada:

- Saia lá em casa, Malô, assim vocês se verão de novo. A Suzy é nossa vizinha.

- Irei lá qualquer dia desses...

- Olha lá, baiano, promessa é dívida – bradou Renato Amarante, ligando o motor.

- Fiquem tranqüilos, quando menos vocês esperarem, chegaremos lá.

- Vamos, Renato, estou morrendo de sono – disse Dona Cleyde, abrindo a boca.

- Vamos conosco, Malo – disse Renato Amarante.

- Não posso ir agora, sou tesoureiro do Grêmio e preciso acertar contas com a turma logo mais.

- Bem, então deixe-me ir – disse Renato Amarante, despedindo-se.

O carro saíra rodando mansamente pelo asfalto e Dona Cleyde e Suzy acenaram com as mãos para Malô, que ficara na calçada inundada pela luz crua do poste.

A tarde de segunda feira era bela e luminosa. Um sol escaldante parecia cozinhar a terra, porém Malô, que não havia esquecido a moça um só momento, seguiu em direção ao colégio onde, segundo o trato, deveria se encontrar com Suzy. Chegando ao ponto combinado, nada vira além de uma rua deserta e continuamente varrida por um vento morno,que parecia anunciar a brusca mudança do tempo; o estudante consultou o relógio, que já marcava 15h10 e aguardou por mais alguns minutos à sombra do tamarineiro, quando avistou a pequena, que dobrava a esquina, onde funcionava o colégio; envergava um costume rosa, que realçava muito bem seus cabelos cor de pêssego e lhe dava uma aparência das claras mulheres de Renoir. Esta ao chegar muito sorridente, cumprimentou o acadêmico com um sorriso e disse:

- Gosto das pessoas pontuais, embora esteja atrasada por alguns minutos. Faz tempo que você chegou?...

- Dez minutos – disse o jovem, olhando no relógio.

- Me atrasei na Secretaria.

- Não há de ser nada – tranqüilizou-a beijando –lhe a testa.

O rapaz, em seguida, tomou-a pela mão e disse a sorrir:

- Por você sou capaz de sacrificar a própria vida.

- Não seja exagerado, gosto de sinceridade.

- Estou sendo mais que sincero.

- Porventura não estás dando evasão à veia poética, não?...

- Já viu poeta insensível à beleza?...

Sorriram os dois e a moça apertou a mão do rapaz entre as suas, e encostou a cabeça no seu peito magro e peludo.

Malô abraçou-a e seguiram em direção à casa de Suzy.

A tarde morria mansamente e o sol arrefecia um pouco sua ira, deixando o poente bordado, como uma tela de Turner. Uma araponga, numa casa qualquer, martelava com estridência; alguns cães passavam a perseguir uma cadela no cio, que caminhava apressada e distribuía ferozes bocanhadas. Mais adiante, uma leva de moleques disputavam uma pelada e diziam palavrões, porém os dois, que se achavam atraídos um pelo outro, caminhavam vagarosamente, bem agarradinhos, a se beijar com sofreguidão e indiferentes a tudo que não lhes dissesse respeito.

O sol nesse momento acabava de desaparecer no horizonte e os dois aproximavam-se do Asilo São Geraldo, onde as árvores do outro lado do muro inundavam de folhas e perfume uma ruazinha sem movimento, quase, na maioria, constituída de altos muros coroados de cascos de vidro. Suzy contempla o lugar, olha no rosto magro do namorado e diz:

- Que lugar bom para se namorar, não achas?...

- Ótimo!... Excelente!... – puxou a moça e encostaram-se no muro.

- Aqui pelo menos ficamos livres dos olhos curiosos – não?...

- Ok – fez o rapaz, beijando-lhe a boca com vigor.

O recanto era realmente agradável, o pipilar dos pássaros que se agasalhavam nas árvores enchia o ar de trinados e chilreios inesquecíveis. O vento mais brando e mais fresco trazia um cheiro bom de fruta madura, flores, hortas molhadas e bife frigindo, vindos da cozinha e dos jardins do asilo.

Continua...

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Suzy e Malô...

Continuação do Cap.II abaixo

João Branco, um estudante magricela e sardento, que também atendia por Sinclair Lewis e defendia o mesmo ponto de vista de Galileu, reconduziu a conversa, que tendia a se desmoronar com o aparte de Chico:
- Estou com Galileu no tocante à mulher, que a meu ver, fora a procriação da espécie, não possui outro mérito qualquer.
- Você é um louco, Branco!... – disse Júlio Prado, cortando a dialética do sardento.
- Discordo do seu ponto de vista, Branco, mas vamos que a mulher fosse totalmente estúpida como vocês advogam e só tivesse a seu favor a propagação da espécie, não seria tudo?... – inquiriu Narciso Vargas, um paraibano grandalhão, moreno e admirador de José Lins do Rego e José Américo de Almeida e que se fazia respeitado pela sua oratória.
- A fim de aumentar as desgraças do mundo?... – indagou Galileu.
Oscar Duarte, um tipo gozador, que não levava nada a sério, nem mesmo o seu curso de Direito, quebrou a seriedade da palestra, dizendo, a limpar os óculos na fralda da camisa:
- Eu, nestas questões relacionadas com muié, fico com aquele filósofo popular que disse com muita precisão que “...se Deus fez algo melhor que a mulher sobre a face da terra, guardou-a muito bem guardado para si mesmo”. Não posso crer que exista algo melhor do que aquele pedaço de couro peludo e mijado que ela carrega entre as pernas.
A sala quase vem abaixo com a tirada sarcástica do Duarte e Cabeção, acrescentando algo à pilhéria, disse em tom moleque:
- Até eu, que sou mais bobinho, por um pedaço de carne mijado sou capaz de dizer que a mulher é a suprema razão da vida.
Novas risadas.
Galileu, novamente tomando as rédeas da conversa, disse em tom sério:
- A mulher, pensando bem, é a corda dissonante da natureza!...
- UUU!... – fizeram os defensores do belo sexo, que não estavam dispostos a discutir os méritos do assunto, deixando que Galileu filosofasse sozinho e esse, por sua vez, não achando resistência por parte dos seus contendores, retirou-se da sala arrastando após si uma leva de jovens, que ansiosos queriam beber mais e mais de suas doutrinas pessimistas. E Malô, ao cabo de alguns minutos, retornou ao salão festivo, onde os primeiros pares começavam a dançar.
Cabeção, no palco, imperava, com sua ginga de malandro carioca, a cantar um samba em voga. Galileu, em volta de uma mesa, apregoava sua filosofia. Mário Neto, que há muito vinha de olho em Érika, uma linda germânica, que cursava jornalismo, tentava conquistá-la. Oscar Duarte (famoso depois da piada, que andava de boca em boca), saíra dançando com Ester, enquanto Malô, após trocar algumas palavras com o professor Moraes, que vinha entrando acompanhado pela esposa, aproximou-se de Suzy e Dona Cleyde, que foram perguntando à queima roupa:
- Malô, quem é essa menina que dança com o Duarte?... É irmã dele, Dona Cleyde: a caçula, chama-se Fernanda. Tem mais duas do mesmo porte dessa – informou o acadêmico.
- Que belo rosto tem ela, não achas, Malô?...
- Oh, sim – fez o moço, desinteressado.
Até parece a Madmoiselle Rivéri de Ingres – acrescentou Suzy, com ar de quem manja de artes plásticas.
- Deveras!... – disse dona Cleyde.
- E como dança bem – obtemperou Renato, que tinha fumaça de bom passista.
Malô, em seguida, tirou Suzy para dançar, enquanto Renato Amarante e Dona Cleyde saíram valsando e causando inveja a quase todos os presentes no salão.
Cabeção, no palco, imperava, cantando uma valsa dengosa, que fazia fremir os corpos presentes.
O calor na sala era intenso e Suzy, após alguns passos desajeitados, sugeriu:
- Como faz calor, não seria melhor se fôssemos conversar lá onde estávamos?...
- Você acha?...
- Oh, sim, está quente – disse a moça, comprimindo o busco perfumado e morno contra o peito magro e cabeludo do estudante.
Logo em seguida, após a parte, tomou o rapaz a mão da menina e a reconduziu para os fundos do salão, onde sentaram em volta de uma mesa e iniciaram uma palestra, que terminou em namoro.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Suzy e Malô...

CAPÍTULO II (Capítulo I, abaixo)

A moça sorriu em sinal de confirmação.
- Desejo-lhe êxito – disse o estudante.
- Obrigada!...
- Malô, você agora é quem deve falar para Suzy algo do seu sucesso literário – disse Dona Cleyde.
- Sim, isso mesmo, conte-me algo do quem tem escrito.
- Como literatura séria, pouco tenho produzido. Venho me dedicando mais ao jornalismo.
- Leio sua coluna todos os dias – disse a moça.
- Não diga essa!... – fez o rapaz surpreso.
- Juro!...
- Como tomou contato com minha coluna?... – interessou-se Malô.
- Por intermédio dos dois – apontou para Dona Cleyde e Renato, que riam ao lado.
- Já publicou algum livro de versos?... – perguntou a moça.
- Não. Tenho um pronto, talvez saia no próximo ano. Venho de publicar um de contos, quem vem tendo boa aceitação por parte do público e da crítica especializada.
- Qual o título?... – inquiriu Suzy.
- “Os Humilhados”.
- Conheço-o ajuntou a moça, cortando o acadêmico. Já li. Trata-se de uma família de nordestinos que emigra do alto sertão baiano, se não me falha a memória, de Curiapeba, para ganhar a vida em São Paulo – não?
- Exato, como bom filho de fazendeiros nordestinos, sou um sujeito amarrado ao Nordeste e quase sempre o tomo por base dos meus escritos.
- O Nordeste é realmente um tema palpitante.
- Gilberto Freyre que o diga – fez Malô, a sorrir.
- Gosta do Gilberto?...
- É meu escritor de cabeceira, talvez ninguém nestes brasis conheça tanto de nossa formação quanto ele.
Nesse ínterim, chegou Galileu, pedindo licença e convidando Malô a comparecer ao reservado, onde os colegas reclamavam a sua presença.
O moço pediu licença e se afastou, com a imagem loira na cabeça.
- Procure-nos depois, Malô – disse Dona Cleyde.
- Pois não – sorriu o rapaz.
- Temos algo sério a tratar com você, baiano – disse Dona Cleyde, piscando o olho maliciosamente para a pequena, que se mantinha séria.
- Não se preocupe Dona Cleyde, voltarei logo que surgir oportunidade.
Ao entrar no salão cheio de rapazes e moças que fumavam, bebiam e, sobretudo falavam safadezas, fora interrogado por Júlio Prado, que sorvia um copázio de chopp:
- Então, Mano-Velho, está a conquistar uma gringa que não é deste mundo – não?...
-Estou tentando – disse Malô, com humildade.
-Fazes muito bem – disse Gorki, intrometendo-se na conversa.
- Eu a vi, é realmente uma fêmea dessas de fazer qualquer macho perder a cabeça – grunhiu Mário Neto, que no momento já se achava meio embriagado.
- O meu amigo sempre teve bom gosto – doutrinou Chico.
- Então vais assinar o atestado de óbito, Malo? - inquiriu Olegário Cabral.Digo isto, por julgar o casamento uma instituição falida, espécie de morte prematura para o homem inteligente.
- Mas quem está falando em casamento e inteligência?... – perguntou Malô, a sorrir.
- Não se preocupe não meu nego, isso é o princípio da decadência, obtemperou Galileu. A mulher só atrapalha a vida do homem. Mormente do universitário. Devemos fugir o máximo desse sexo decadente. Convém saber que os grandes homens não se deram com o casamento. Veja, contou nos dedos: Tolstoi, Gauguin, Tchaikowisky, Zola, etc. Schopenhauer, o velho filósofo de Dantzigue, nunca se casou e com razão detestava a vaidade das mulheres.
- Começou a pregação!... – gritou Pepe Velazquez, um espanhol rebelde, que cursava o quarto ano de Direito e era vidrado em Marx.
- Schopenhauer foi um doido varrido e você um cabotino fanático!... grunhiu Giblan Cordovil, meio exaltado pelo efeito da bebida.
- Sim, até certo ponto, estou de acordo com você a respeito do autor de “Das Dores do Mundo”. Quanto a mim, pode pensar o que quiser, o direito é seu, mas voltando a Sócrates, o que você me diz?... – Lembre-se que o esfarrapado filósofo de Atenas chegou a dizer que o casamento só proporciona dois dias felizes ao homem e esses são: “...o dia em que ele conduz a noiva para a cama e o dia que a deposita no túmulo”.
O interlocutor fugiu do debate e Chico, meio paternal, disse, batendo no ombro do colega:
- Galileu, creio que você errou redondamente quando optou por Direito, você devia ter feito filosofia pura – não?...
- Para você ver, meu nego!... – disse Galileu, evasivamente, com e a dizer não me amoles, vá para o diabo que o carregue.

Continua...

terça-feira, 17 de junho de 2008

Susi e Malô numa receita de amor eterno




SUSI E MALÔ NUMA RECEITA DE AMOR ETERNO

(Novela)

(Em memória de Ernest Hemingway)

“O amor não passa de uma necessidade revoltante”
Schopenhauer


Malô, que de há muito havia rompido com Julinha, encontrou-se na festa dos acadêmicos com a família Amarante, seus velhos conhecidos, desde a época do Hotel Ipiranga, onde morara por algum tempo.
Renato Amarante e Dona Cleyde, ao cumprimentarem o antigo boêmio, hoje estudante de Direito, muito otimista e sorridente como de costume, disse Dona Cleyde, apresentando ao acadêmico uma linda loira de cabelos cor de pêssego maduro, rosto rosado, bem feito e gracioso como o de uma Mona Lisa Tropical:
- Malô, apresento-lhe a Suzy, é a nossa vizinha. Chegou a pouco tempo de Ribeirão Preto.
Olhou para a moça com um sorriso malicioso e acrescentou:
- Professora Susy Pollilo Pinheiro.
O acadêmico, apertando a mão da menina, disse, estampando um sorriso.
Muito prazer. Malô!...
A moça, olhando nos fundos dos olhos do rapaz, gemeu:
- Suzy...
- Suzy, esse é o Malô de quem sempre lhe falo. Fora nosso hóspede por dois anos. Cursa o último ano de Direito e é sobretudo um excelente poeta.
- Não elogie assim, Dona Cleyde, não me faças convencido.
- Ele é muito modesto, menina, mas para o seu governo, quero apenas te dizer que é o autor da letra desse sambinha popular, que anda a fazer sucesso por aí afora na voz bonita da cantora Ronilda. Cantou uma ária dos “Independentes” com voz baixa e desafinada de taquara rachada:

“Como, nós independentes,
sujeitar-nos a corujas
viperinos e imponentes
cujas vidas são sujas?...

- É você o autor?...perguntou Suzy.
Sim!... –disse Malô.
- Gosto muito, tanto da letra como da música.
- Obrigado.
- O compositor da música logo estará por aqui, Suzy. Toca violão e canta muito bem – observou Dona Cleyde.
- E além do mais é um grande humorista – acrescentou Malô.
- Junto a ele ninguém fica sem dar risadas – murmurou Dona Cleyde.
- Gostaria de conhecê-lo.
- Farei questão de lhe apresentar.
- Ótimo!... Ótimo...
- Essa turminha aqui é estupenda – resmungou Dona Cleyde.
Renato Amarante, que até o momento permanecia calado, esperando sua vez, disse, revelando as qualidades da moça:
- A Suzy também é poeta, Malô. Já publicou três livros de versos, apontou para a moça, que ria, ao lado.
- Não diga essa!... murmurou o acadêmico, surpreso – então sendo assim, deixe-me cumprimentá-la mais uma vez, pela alegria em sabê-la uma expoente do verso.
Riram todos e a moça, olhando nos olhos negros do rapaz, disse num tom humilde:
- Devagar que o vaso é de barro!...
- Quais os títulos dos seus livros?...
- “Sobre as margens do Danúbio Azul”; “Vento, sal e sol” e “Sonhos de uma tarde de verão em Vila Rica”.
- Belos títulos.
- São belos também os poemas e autora, não achas, Malô?... – inquiriu Dona Cleyde.
- Creio cegamente sobre os poemas, Dona Cleyde, porque quanto à autora, estou certo disso.
- Não gozem da pobre – disse a moça, ruborizando-se.
- Fiquei curioso por ler seus livros.
- Surgirá oportunidade.
- Segue qual escola?...
- O Modernismo.
- Ótimo!... Está atualizada!...
- Admiro imensamente o verso livre e bem feito. Se há coisa que detesto são esses poetas, que ficam presos às peias da métrica e da rima.
- Tudo isso está velho, cheirando a “bilaquismo’, disse Malô.
Renato Amarante, que tinha predileção pelo Modernismo, atalhou dizendo:
- De l922 para cá, a poesia brasileira tomou dimensão com a Semana da Arte Moderna.
- Realmente – afirmou Malô – os rapazes de 22 semearam naquelas noites mal freqüentadas do Municipal o gérmem do modernismo, que hoje floresce.
Dona Cleyde ouvindo soar o nome do movimento modernista, evocou um trecho de Mário de Andrade, seu poeta preferido:

“O nariz guardem nos rosais
A língua no Alto do Ipiranga
Pra cantar a liberdade
Saudade”.

- Eles foram verdadeiros heróis, que tiveram coragem de suportar o ridículo, a fim de desvencilhar a nossa poesia daqueles lugares comuns, a qual vinha presa com um Bilac, um Alberto de Oliveira, um Raimundo Correia e tantos outros ilustríssimos parnasianos, que apenas se preocupavam com a forma redonda e sonante dos versos, em vez do conteúdo – disse Suzy, que em seguida olhou nos olhos de Malô e acrescentou :
- Não me canso de reler Mário de Andrade, a parte poética do Oswald de Andrade, o velho Bandeira, o baiano, Sosígenes Costa, Raul Bopp, Ascenso Ferreira e sobretudo o Jorge de Lima de “Essa Negra Fulô” e “Invenção de Orfeu”.
- Já leu Alfredo Ângelo?...
- Não...
- Vou apresentar-lhe hoje, é um poeta genial: já publicou cinco livros de versos e um de prosa.
- É autor daquele livrinho de poemas religiosos, do qual você copiou “Getsêmani”, acodiu Dona Cleyde.
- Ah, lembro-me agora!...
- A Suzy também é uma moça que promete, Malô – está a trabalhar com afinco em mais um livro de versos – observou Renato Amarante.

Continua...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

MONSTRO DE VIDRO E AÇO


“O Martinelli era um soldado no planalto” Domingos Carvalho da Silva

Malha o martelo
Tine a picareta
Brande o cutelo
Isto é São Paulo
Cidade duelo.

Desodorante vencido
Bodum de suor
Homens esquecidos
Sobre o frio e o calor
Isto é São Paulo
Cidade rigor

Barulheira infernal
Artéria congestionada
Manhã de cristal
Pista molhada
Isto é São Paulo
Iniciando a jornada

Correria, mau humor
Homens emproados
Demonstrando valor
Isto é São Paulo
Cidade labor.

Apitos de trens
Resfolegar de motores
Homens que vão
Gente que vem
Sinos que tocam:
Blem!...Blem!...Blem!...