quinta-feira, 24 de julho de 2008

Suzy e Malô...

Suzy e Malô numa receita de amor eterno (V)

Continuação do capítulo IV, abaixo

Um papagaio, empoleirado nos galhos de um vetusto abacateiro, berro estridentemente:

- Dê cá o pé loro...Cá o pé – fifiu!...

Um gato vermelho, de grandes olhos amarelos, que pareciam dois faróis, passava coromiando por cima do muro, como que a chamar a fêmea para as delícias do amor polígamo. O papagaio repetia:

- Cá o pé loro!...Fifiu!...

Nisso a noite caiu de verdade, deixando-os iluminados pela luz crua e mortiça do poste. Os dois, por sua vez, encostaram-se à parede e permaneceram até tarde, trocando juros de amor, beijos e abraços apaixonados.

Depois de alguns dias, Malô fora apresentado aos pais de Suzy, dois velhos italianos, que já o tinham na conta de “um de casa”, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, devido aos elogios que Dona Cleyde e Renato Amarante teciam a seu favor.

Tudo agora parecia correr bem e os dois estavam realmente apaixonados um pelo outro. Prova disso é que todos os dias o estudante sacrificava algumas horas dos seus estudos, leituras e pesquisas, para ir buscar a moça no colégio, a fim de mais tempo ficarem juntos, tecendo planos para o futuro, que segundo as suas conjecturas, lhes parecia belo e risonho.

Certo dia, nesse percurso, após uma tarde de beijos, abraços e apalpadelas, sugeriu Malô:

- Meu mor, gostaria que você fosse à minha casa; estamos a poucos passos dela, assim pelo menos você fica conhecendo-a e eu poderei ler para você os originais do meu livro.

- Tem gente em sua casa?... – indagou a moça.

- Oh, sim, deve estar lá a cozinheira. Olhou o relógio e mentiu desavergonhadamente, pois a moça havia se retirado muito antes de Malô ter deixado a casa.

- Sendo assim vamos – disse a moça.

- Espero que sugira um belo título para os meus originais.

- Logo eu, amozinho?...

- Sim, você mesma!...

- Se é coisa que eu não sei é dar título...

- Pois eu acho que você tem muito bom gosto; porventura “Sobre as margens do Danúbio Azul”, “Vento, sol e sal” e “Sonhos de uma tarde de verão em Vila Rica” não são belos títulos?...

- Servem – disse a moça.

Sorriram, apertando-se um contra o outro.

Nesse ínterim já estavam chegando à casa dela. A porta, que por sua vez, não poderia fazer milagre, a fim de confirmar a mentira do rapaz, permanecia fechada e Suzy, com ceticismo na voz, inquiriu:

- A sua empregada já foi embora?...

- Creio que deve ter saído por aí... – disse Malô abrindo a porta e fazendo um largo gesto com a mão, convidando a moça a entrar. Essa, por sua vez, tartamudeou:

- Devemos...de...de...

- Não se preocupe querida, sei o que você está pensando. Acalme-se, a empregada por cedo logo estará de volta.

A moça por fim acedeu, meio desconfiada.

- Afinal, para que todo este receio, você não é minha noivinha, não iremos nos casar em breve?... – apertou o lóbulo da orelha da moça e beijou-a na testa de maneira ingênua e afetuosa.

- Anrã!... – fez a garota, acalmando-se.

Malô fechou a porta com o pretexto de que entrava muito vento e abriu a persiana de uma larga janela, que inundou a sala de claridade. Em seguida, convidou a moça a sentar-se junto à mesa, apanhou os originais do romance na gaveta e leu para Suzy o primeiro capítulo. A moça disse haver gostado muito da estória em si, como também do estilo, que a ser ver era enxuto e desprovido de “enchimento retórico”. Em seguida levantou-se e dando voltas pelas costas do acadêmico, abraçou-se ao seu pescoço a olhar a pauta escrita sobre a mesa:

- Meu bem, está muito bom esse capítulo. Gosto da clareza que você conseguiu dar ao texto.

- Pois eu não estou nada satisfeito com alguns parágrafos, os quais pretendo cortar ou modificar.

- Já sei tudo, trata-se da eterna insatisfação dos escritores com seus trabalhos – no?... Agora não vai você dar uma de Hemingway dos trópicos e reescrever esse capítulo 29 vezes. Para mim está muito bom, gostaria até de saber a quem você foi pedir inspiração para escrever coisa tão bela assim.

Continua...

Suzy e Malô...


Suzy e Malô numa receita de amor eterno (IV)

Continuação do capítulo III abaixo

A festa chegava ao fim. Dona Cleyde e Renato aproximam-se dos namorados, pediram licença e avisaram a Suzy que estava na hora de se retirarem. Em seguida, dirigiram-se para o automóvel estacionado do outro lado da rua, deixando que Malô e Suzi seguissem atrás. Suzy, aproveitando, disse quebrando um pequeno silêncio entre os dois:

- Se tiver tempo, vá me buscar na segunda-feira, às l5 horas, no colégio Afonso Taunay, onde leciono, assim poderemos nos rever e termos tempo para conversar – ok?...

- Irei, sim – disse o estudante.

- Te aguardo no saguão do prédio, próximo à porta do lado esquerdo.

- Melhor seria que eu lhe esperasse na porta do Cine Nobel, gosto, sempre que posso, distanciar-me de padres e freiras.

Sorriu a moça:

- Como queiras...

Então na porta do Nobel – ok?...

- Aguardo, heim?... tchau!...

- Tchau!... durma em paz...

Dona Cleyde obtemperou, com voz cansada:

- Saia lá em casa, Malô, assim vocês se verão de novo. A Suzy é nossa vizinha.

- Irei lá qualquer dia desses...

- Olha lá, baiano, promessa é dívida – bradou Renato Amarante, ligando o motor.

- Fiquem tranqüilos, quando menos vocês esperarem, chegaremos lá.

- Vamos, Renato, estou morrendo de sono – disse Dona Cleyde, abrindo a boca.

- Vamos conosco, Malo – disse Renato Amarante.

- Não posso ir agora, sou tesoureiro do Grêmio e preciso acertar contas com a turma logo mais.

- Bem, então deixe-me ir – disse Renato Amarante, despedindo-se.

O carro saíra rodando mansamente pelo asfalto e Dona Cleyde e Suzy acenaram com as mãos para Malô, que ficara na calçada inundada pela luz crua do poste.

A tarde de segunda feira era bela e luminosa. Um sol escaldante parecia cozinhar a terra, porém Malô, que não havia esquecido a moça um só momento, seguiu em direção ao colégio onde, segundo o trato, deveria se encontrar com Suzy. Chegando ao ponto combinado, nada vira além de uma rua deserta e continuamente varrida por um vento morno,que parecia anunciar a brusca mudança do tempo; o estudante consultou o relógio, que já marcava 15h10 e aguardou por mais alguns minutos à sombra do tamarineiro, quando avistou a pequena, que dobrava a esquina, onde funcionava o colégio; envergava um costume rosa, que realçava muito bem seus cabelos cor de pêssego e lhe dava uma aparência das claras mulheres de Renoir. Esta ao chegar muito sorridente, cumprimentou o acadêmico com um sorriso e disse:

- Gosto das pessoas pontuais, embora esteja atrasada por alguns minutos. Faz tempo que você chegou?...

- Dez minutos – disse o jovem, olhando no relógio.

- Me atrasei na Secretaria.

- Não há de ser nada – tranqüilizou-a beijando –lhe a testa.

O rapaz, em seguida, tomou-a pela mão e disse a sorrir:

- Por você sou capaz de sacrificar a própria vida.

- Não seja exagerado, gosto de sinceridade.

- Estou sendo mais que sincero.

- Porventura não estás dando evasão à veia poética, não?...

- Já viu poeta insensível à beleza?...

Sorriram os dois e a moça apertou a mão do rapaz entre as suas, e encostou a cabeça no seu peito magro e peludo.

Malô abraçou-a e seguiram em direção à casa de Suzy.

A tarde morria mansamente e o sol arrefecia um pouco sua ira, deixando o poente bordado, como uma tela de Turner. Uma araponga, numa casa qualquer, martelava com estridência; alguns cães passavam a perseguir uma cadela no cio, que caminhava apressada e distribuía ferozes bocanhadas. Mais adiante, uma leva de moleques disputavam uma pelada e diziam palavrões, porém os dois, que se achavam atraídos um pelo outro, caminhavam vagarosamente, bem agarradinhos, a se beijar com sofreguidão e indiferentes a tudo que não lhes dissesse respeito.

O sol nesse momento acabava de desaparecer no horizonte e os dois aproximavam-se do Asilo São Geraldo, onde as árvores do outro lado do muro inundavam de folhas e perfume uma ruazinha sem movimento, quase, na maioria, constituída de altos muros coroados de cascos de vidro. Suzy contempla o lugar, olha no rosto magro do namorado e diz:

- Que lugar bom para se namorar, não achas?...

- Ótimo!... Excelente!... – puxou a moça e encostaram-se no muro.

- Aqui pelo menos ficamos livres dos olhos curiosos – não?...

- Ok – fez o rapaz, beijando-lhe a boca com vigor.

O recanto era realmente agradável, o pipilar dos pássaros que se agasalhavam nas árvores enchia o ar de trinados e chilreios inesquecíveis. O vento mais brando e mais fresco trazia um cheiro bom de fruta madura, flores, hortas molhadas e bife frigindo, vindos da cozinha e dos jardins do asilo.

Continua...

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Suzy e Malô...

Continuação do Cap.II abaixo

João Branco, um estudante magricela e sardento, que também atendia por Sinclair Lewis e defendia o mesmo ponto de vista de Galileu, reconduziu a conversa, que tendia a se desmoronar com o aparte de Chico:
- Estou com Galileu no tocante à mulher, que a meu ver, fora a procriação da espécie, não possui outro mérito qualquer.
- Você é um louco, Branco!... – disse Júlio Prado, cortando a dialética do sardento.
- Discordo do seu ponto de vista, Branco, mas vamos que a mulher fosse totalmente estúpida como vocês advogam e só tivesse a seu favor a propagação da espécie, não seria tudo?... – inquiriu Narciso Vargas, um paraibano grandalhão, moreno e admirador de José Lins do Rego e José Américo de Almeida e que se fazia respeitado pela sua oratória.
- A fim de aumentar as desgraças do mundo?... – indagou Galileu.
Oscar Duarte, um tipo gozador, que não levava nada a sério, nem mesmo o seu curso de Direito, quebrou a seriedade da palestra, dizendo, a limpar os óculos na fralda da camisa:
- Eu, nestas questões relacionadas com muié, fico com aquele filósofo popular que disse com muita precisão que “...se Deus fez algo melhor que a mulher sobre a face da terra, guardou-a muito bem guardado para si mesmo”. Não posso crer que exista algo melhor do que aquele pedaço de couro peludo e mijado que ela carrega entre as pernas.
A sala quase vem abaixo com a tirada sarcástica do Duarte e Cabeção, acrescentando algo à pilhéria, disse em tom moleque:
- Até eu, que sou mais bobinho, por um pedaço de carne mijado sou capaz de dizer que a mulher é a suprema razão da vida.
Novas risadas.
Galileu, novamente tomando as rédeas da conversa, disse em tom sério:
- A mulher, pensando bem, é a corda dissonante da natureza!...
- UUU!... – fizeram os defensores do belo sexo, que não estavam dispostos a discutir os méritos do assunto, deixando que Galileu filosofasse sozinho e esse, por sua vez, não achando resistência por parte dos seus contendores, retirou-se da sala arrastando após si uma leva de jovens, que ansiosos queriam beber mais e mais de suas doutrinas pessimistas. E Malô, ao cabo de alguns minutos, retornou ao salão festivo, onde os primeiros pares começavam a dançar.
Cabeção, no palco, imperava, com sua ginga de malandro carioca, a cantar um samba em voga. Galileu, em volta de uma mesa, apregoava sua filosofia. Mário Neto, que há muito vinha de olho em Érika, uma linda germânica, que cursava jornalismo, tentava conquistá-la. Oscar Duarte (famoso depois da piada, que andava de boca em boca), saíra dançando com Ester, enquanto Malô, após trocar algumas palavras com o professor Moraes, que vinha entrando acompanhado pela esposa, aproximou-se de Suzy e Dona Cleyde, que foram perguntando à queima roupa:
- Malô, quem é essa menina que dança com o Duarte?... É irmã dele, Dona Cleyde: a caçula, chama-se Fernanda. Tem mais duas do mesmo porte dessa – informou o acadêmico.
- Que belo rosto tem ela, não achas, Malô?...
- Oh, sim – fez o moço, desinteressado.
Até parece a Madmoiselle Rivéri de Ingres – acrescentou Suzy, com ar de quem manja de artes plásticas.
- Deveras!... – disse dona Cleyde.
- E como dança bem – obtemperou Renato, que tinha fumaça de bom passista.
Malô, em seguida, tirou Suzy para dançar, enquanto Renato Amarante e Dona Cleyde saíram valsando e causando inveja a quase todos os presentes no salão.
Cabeção, no palco, imperava, cantando uma valsa dengosa, que fazia fremir os corpos presentes.
O calor na sala era intenso e Suzy, após alguns passos desajeitados, sugeriu:
- Como faz calor, não seria melhor se fôssemos conversar lá onde estávamos?...
- Você acha?...
- Oh, sim, está quente – disse a moça, comprimindo o busco perfumado e morno contra o peito magro e cabeludo do estudante.
Logo em seguida, após a parte, tomou o rapaz a mão da menina e a reconduziu para os fundos do salão, onde sentaram em volta de uma mesa e iniciaram uma palestra, que terminou em namoro.