quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Algumas considerações sobre a Toca Filosófica por Iracema M.Regis


A Toca Filosófica ou seja o couto, onde fica entrincheirado o jagunço curiapebano, defensor das letras nacionais, que atende pelo cognome Th, e mais conhecido por Aristides Thedoro, escritor e cidadão mauaense, oriundo de plagas diamantinas, no sertão baiano, é um lugar sagrado, quase inabitável e de difícil acesso. Primeiro, porque fica no alto de um morrote e para alcançarmos o topo faz-se necessário subirmos por uma trilha estreita e íngreme (o que só podemos arriscar durante o dia), pois à noite, como todo esconderijo que se preze, a ausência de luz elétrica (preferida pelo dono), não permite que vejamos os 38 degraus limosos pelo tempo, (a exemplo do que vimos nas escadarias seculares do Solar de Apipucos, no Recife, hoje Fundação Gilberto Freyre, onde viveu e morreu o maior sociólogo brasileiro, Sr Gilberto Freyre, autor de uma centena de títulos, entre eles Nordeste, Perfis de Euclides e outros perfis, Sobrados e Mucambos, Assombrações do Recife velho e, o mais famoso deles, Casa Grande & Senzala).

Galgados os 38 degraus, temos uma visão meio paradisícaca – (perdoe-me o exótico habitante, que não gosta nem um tiquinho desse nome pomposo), explico: lá em cima há uma vista panorâmica de toda a geografia e do firmamento e, como se não bastasse, o cabra dá-se ao luxo de cultivar hortas belíssimas, com destaque para as verduras que consome: um pé de alecrim e outro de babosa, ambos gigantescos, que poderiam ter passado para o livro dos recordes, pois medem de 4,00 a 4,50 m de altura. Tudo de um verde múltiplo, mesclado de rosas, margaridas, dálias, palmas, cravos vermelhos, brancos, matizados e amarelos; capim santo, erva cidreira e outras florezinhas, a maioria levantados em balcões, que nos transportam aos jardins suspensos da antiga Babilônia.

Mais um detalhe curioso: embora não tenha uma tabuleta à entrada, como aquela da Academia de Platão, na velha Grécia – “não entre aqui quem não gostar de geometria”, nesse Couto, por uma seleção natural de gostos, afinidades, filosofia de vida, são bem poucos os que lá adentram: a exemplo das religiões, só os escolhidos por Th.

Quase inabitável, sim, diante da parafernália de papéis, estantes apinhadas de livros, tomos espalhados pelos vãos da cozinha, banheiro, alcova e adjacências, somando-se a velha e parca mobília, a mesa desarrumada, em que repousa a legendária, retrógrada e bem amada OLIVETTI, ferramenta principal do ato de escrever do autor, com o total de nove livros publicados, sendo quatro deles através do FAC – fundo de Assistência à Cultura de Mauá. O mais recente, O Vaqueiro Bendengó e mais estórias de Curiapeba, em fase de composição; e aproximadamente 4000 artigos publicados na imprensa, durante uma trajetória de 38 anos dedicados ao jornalismo. Das paredes recobertas de quadros de pintura, (incluso um original de Volpi), colocados de forma desordenada, predominando o valor das estampas e a personalidade desprendida do colecionador, que conhecemos tão bem.

Ao afirmar que a Toca – (assim nos referimos no dia-a-dia) – é um local sagrado (o proprietário se diz ateu) não pensem que ali encontraremos santuariozinhos, altares, confessionários, sacristia ou que a arquitetura seja diferente das residências comuns do bairro. Não. Mesmo obedecendo às linhas padronizadas das construções de classe média baixa, pelo tesouro ali encontrado (cerca de mais ou menos 5000 exemplares, para ser modesta), composto por Literatura Brasileira e estrangeira – poesia e prosa, obras raras, como primeiras edições, muitas delas autografadas pelos seus respectivos autores, entre eles Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, etc. O primeiro livro, Os Escravos, de Castro Alves, adquirido em 1º de novembro de 1958; obras completas, como a balzaqueana, em edição especial da Globo de Porto Alegre; livros de arte, com predominância para a pintura; sobre cangaço, mais de 200 exemplares; tudo que conseguiu adquirir, de e sobre Euclides da Cunha e Canudos; muitos livros sobre a questão da negritude, a escravidão; música popular brasileira, jazz, história antiga, obra completa de e sobre Zé Lins do Rego, Graciliano Ramos; Semana de 1922; autores russos, americanos, e sobretudo Literatura Portuguesa; livros de culinária, pois o nosso cangaceiro também é um exímio cozinheiro. E ainda uma infinidade de tomos que tratam do próprio livro, editoração, encadernação, etc.

A Toca Filosófica nos parece a grande nave de um templo em que navegamos (menos na Internet, velha birra do dono), meditamos, filosofamos, falamos de Literatura, declamamos, apreciamos fotografias, ouvimos música, pensamos o mundo pela ótica da cultura e dos nobres valores.

Instigados que somos pelo universo livresco e pela pessoa do bibliófilo, nos irmanamos, nos purificamos pela arte e dali saímos como se tivéssemos deixado lá dentro todos os nossos pecados. Se é que ler, escrever, nos empanturramos de boas conversas e amizades sejam pecados venal ou mortal.

Iracema M.Régis é jornalista e escritora. Autora de 11 títulos publicados, incluindo poesia, literatura de cordel, contos, resenha literária, entre eles Argamassa e mais l4 poemas sobre Mauá e Babilônia de Papel – e outros artigos sobre obras e escritures de Mauá e da região do ABC paulista.

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